Como se pode ver pela significativa documentação fotográfica apresentada nas paredes da Galeria AM, as derivas propostas pelo “Entre” são de outra ordem, de que são exemplares o carrinho que protagonizou a mais recente delas, a primeira desde o começo da pandemia, e que os intrépidos Desali e Palestina estacionaram no centro da sala da AM. Produto típico da engenhosidade forjada no trato com o precário, tão comum nas periferias das nossas grandes cidades e nos rincões pobres dispersos pelo nosso país, o carrinho, heroicamente empinado como um cavalo por dois cabos que o prendem a viga que corre no teto, tem como chassi os restos de uma cama de solteiro e quatro rodas desiguais, um par de rodas maiores de bicicleta, dessas encontradas em ferro-velho e lixões, numa ponta; e na outra ponta duas menores, com pneus de borracha e estrutura metálica novinhos, possivelmente os únicos itens comprados, emendados à cama por meio de uma estrutura feita por tábuas de madeira reaproveitadas. Sobre a cama há um colchão de espuma arruinado e dobrado, uma mangueira sanfonada amarela, garrafas pet de dois litros, pneus, tranqueiras variadas e indiscerníveis, e uma espécie de touceira esfrangalhada feita de galhos secos, encontrados na rua, provavelmente em caçambas de lixo, enfeitado com uma fita branca chamuscada de tinta vermelha espreiada sobre ela. Na frente do carrinho, apoiada no que um dia foi a cabeceira da cama, uma tevê de tubo de vinte polegadas, passa o filme da ação ocorrida em agosto, portanto há pouco mais de um mês, entre às duas da tarde e às sete da noite. Acompanhados por dois bailarinos do grupo Cultura do gueto, Palestina e Desali saíram do bairro da Lagoinha em direção ao centro de BH, empurrando o carrinho, convocando os curiosos à ação, a se juntarem ao grupo alegre e simples como os saltimbancos dos primeiros filmes de Fellini, improvisando construções, esculturas e instalações fugazes a partir dos objetos e materiais que iam encontrando, todas elas dotadas de sentido crítico. Afinal, fazer do lixo a matéria prima do trabalho, por si só garante a linhagem política de seu trabalho, ao mesmo tempo em que comprova que a arte é um ser em movimento contínuo.