Sopro, exposição de Niura Bellavinha na AM Galeria, apresenta obras inéditas da artista que desdobram aspectos explorados por ela ao longo de sua consagrada trajetória. Assim como em situação anteriores, esses trabalhos nascem da incorporação dos processos envolvidos na pintura, isto é, da quantidade notável de possibilidades que o aparentemente corriqueiro encontro entre o pincel e a tela é capaz de suscitar. A razão disso está no fato da artista não entender a pintura tão-somente como o ato de recobrir e vedar uma superfície com a cor. Na verdade, em determinados momentos é quase o contrário, ou talvez um limite: ao invés de limitar-se ao “toque” Niura alterna momentos em que a tinta quase encarna na tela, tornando-as não indistintas, mas unas (isto é, não é uma camada de tinta sobre a tela, mas a tela embebida da cor), com outros em que a pintura se faz entre os mínimos poros da trama do tecido – aqueles micro intervalos tão significativos e tantas vezes neutralizados pelos pintores –, ora percorrendo-os como um desenho que se traça no escorrido dessa linha-tecido que é o próprio corpo da tela, ora assentando-se naqueles pequenos pontos de intervalo entre um fio e outro. Tais sutilezas resultam em uma luminosidade bastante particular de seus trabalhos, na medida em que a opacidade da cor é atravessada por dois tipos de veladura e transparência: uma que cria uma gradação não de planos, mas de densidades da cor, conforme a diluição mediante a qual ela é depositada na tela; outra dada pelo atravessamento da luz do véu da tela, tratando-a quase como uma folha de aquarela na qual a luz vem de trás do papel. Nessas pinturas, a tela é um ponto de encontro dessas luzes e cores provindas de diferentes direções – o reflexo de frente da tela, a fonte vinda de trás dela e, por fim, aquela que está dentro da tela (o pigmento absorvido pelo fio).
Outra questão se impõe em seu processo: trabalhando ora com o sopro, ora com o aspergir por meio de compressores, outras tantas vezes com o escorrer da tinta ou o tingimento, a cor se faz subtraindo o vestígio da pincelada e do gesto manual. É como se fosse uma pintura “não tocada por mãos humanas” – para remeter a noção implícita na origem de várias imagens (sobretudo sagradas) – e, nesse ponto, Niura recoloca a potência da arte na dimensão profunda do gesto de criação: seu “sopro” performado dá vida à obra de arte (é da mitologia que provém o numine afflatur – literalmente o sopro divino, inspirado por um deus donde nasce a poesia – e que subliminarmente aparecia em obras anteriores, como na performance À Linguagem/ A medida do impossível, de 2003), que parece conotar outras questões mais profundas, como no contraste nada fortuito entre seu emprego de pigmentos extraídos da terra e outros caídos do céu, exemplificados pelo uso do pó de meteoritos, conferindo-lhes uma luz não apenas “cósmica”, como se trouxesse um céu estrelado para as margens quadriláteras da tela, mas que contrastam seu brilho punctiforme com o negrume soturno e silencioso sobre ela distendido. De dimensões generosas, a escala de muitas delas nos envolvem, evocando uma tela de cinema onde só há luz e cor, e que nos convida a habitá-las.
Guilherme Bueno
Curador