Sobre planetas, idílios e miudezas
Órbitas de corpos celestes e pictóricos. Triângulos (sempre). Círculos e traços. Elementos gráficos imiscuídos às superfícies cromáticas e típicas da pintura. Nas telas de Ana Horta (1957-1987), o zeitgeist dos anos 1980 no Brasil é contundente, se manifesta sem amarras, escorre para o extracampo do quadro. Trazer esses trabalhos para um recorte atual arrasta junto uma tentativa de nos transportarmos, mesmo que no plano das ideias, a dias de redemocratização, liberdade, experiências, otimismo. Se era declarado por variados artistas o “prazer de pintar” naquelas novas jornadas, como buscar diálogos e conexões de artistas do hoje, mulheres, diariamente no ofício de ateliê, que vivem da própria arte, com uma precursora dessa década tão especial? Não existem respostas lineares e unívocas, mas o desejo de exibir produções singulares e de grande riqueza anteriormente vistas isoladamente ou por meio de recortes outros e que agora podem ser vislumbradas em proximidade e partindo de elos que talvez ainda não tenham sido rascunhados é um motor a quente em Sobre planetas, idílios e miudezas.
O Planeta (1985), de Horta, com seu 1,40 m x 2,40 m, é uma peça fundante do apresentado neste 2023 no braço paulistano da AM Galeria de Arte. Traz em síntese muito do estilo da artista mineira, que atesta uma grande liberdade no fazer, numa abstração que se finca em elementos de (alguma) figuração e que procura na mescla um tanto caótica de elementos da pintura, do desenho e da arte de rua um vigor bastante particular. Ao mesmo tempo que hoje numerosos artistas recorrem ao cósmico, a temporalidades menos terrenas etc, a astronomia visual de Horta se liga a algo muito simples, a cartografias carregadas de banalidades.
“(…) Anotações, sonhos, idéias, situações, o que me vem à cabeça. Um e outro projeto. Uma espécie de diário, com poucas palavras, muitos rabiscos, traços. Tem vezes que contemplo aquilo, a caligrafia, o modo de desenhar palavras”1, conta a artista ao escritor Ignácio de Loyola Brandão em entrevista publicada no catálogo da individual ocorrida em junho de 1984 na lendária Galeria de Arte São Paulo. Horta enfatiza que escreve muito e que não tem ideia do porquê dos triângulos serem constantes em sua obra. Também destaca alguns nomes na formação, como José Alberto Nemer e Maria Helena Andrés – da veterana artista, a coletiva expõe alguns trabalhos de pequena monta.
O aspecto Idílio da coletiva atualmente em curso veio da lembrança da tela de mesmo título de Renata Egreja, participante da exposição, que protagonizou uma individual com esse nome no ano de 2014, com minha curadoria. Egreja justamente nasceu em 1984 e tem uma produção bastante livre, expansiva, de cores sedutoras que pode se ancorar tanto na marcante produção de artistas como Horta, Beatriz Milhazes e Leda Catunda – a lembrar, todas presentes na histórica Como Vai Você, Geração 80?, no Parque Lage, Rio, em 1984 – e também nos especiais desdobramentos de grupos de vanguarda como o Supports/Surfaces, dos 1960-70´s (Egreja estudou na Beaux Arts parisiense).
As configurações idílicas da mostra de hoje, portanto, podem ser vistas como resultantes de processos, se não deflagrados, ao menos muito evidenciados na produção de pintoras que obtiveram êxito de distintas ordens. Elas influenciaram sobremaneira gerações de artistas posteriores que, não sem um labor exaustivo, são representativas no multifacetado circuito da visualidade contemporânea, que não deixa de disponibilizar influências talvez mais imediatas.
O elogio ao cotidiano é um modus operandi dos mais presentes no corpo de obra das emergentes artistas e leva às miudezas do título do recorte. Numa prática que se distancia do épico e do extraordinário, o universo pictórico tão vivaz das artistas Bárbara Basseto, Camila Elis, Carolina Botura, Giulia Bianchi, Jess Vieira, Julia Pereira, Leonora Weissmann, Naira Pennacchi, Nina Horikawa e Thany Sanches, além de Horta, Andrés e Egreja, não apenas atesta a robustez e multiplicidade de uma linguagem, mas esboça investigações, materialidades e pertinências sempre fecundas e abertas.
Mario Gioia, setembro de 2023
1.GALERIA DE ARTE SÃO PAULO. Ana Horta – Pinturas. São Paulo, Galeria de Arte São Paulo, 1984.