Desmistificada, a obra de arte cai do pedestal. À sua espera está Nelson Leirner (1932-2020), herói de nossa gente – ou melhor, nosso anti-herói. Assim como Macunaíma, Leirner burla, desconversa, recria, provoca, apropria-se, “destrói para salvar”, como definiu certa vez o crítico Tadeu Chiarelli. Derrubar e problematizar as verdades estabelecidas servem também para reconstruir e corrigir, palavras de ordem para o ano que se inicia. O primeiro sem o humor ácido de Leirner, mas que promete celebrar e exaltar sua prolífica trajetória, agora póstuma, que começa com a mostra organizada na AM Galeria de São Paulo, com obras que percorrem as produções que vão dos anos 60 às atuais.
Diferentemente do personagem criado pelo poeta e escritor brasileiro Mário de Andrade, em 1928, desprovido de caráter e ética, Leirner traz luz à verdade. Está comprometido em mostrá-la para curar as mazelas do mundo. Sua dureza oprime, mas também engrandece. Nomeia referências, não esconde o coletivo – aliás não esconde nada. Reforça a ideia de que é na mente do artista que está a verdadeira criação, não propriamente em suas mãos: o conceito sempre nasce antes e, a partir dele, a obra, que pode ser reinventada a partir de outra arte ou da não-arte. Ironiza abertamente o que julga ruim e também o que acredita ser bom. Reafirma que as mudanças operadas pela modernidade vêm mexendo há décadas com o status que torna cada produção artística uma obra única.
A reprodução, e consequentemente sua reinterpretação, deixam de ser tratadas como meras cópias para serem pensadas como obras em si. Mostrou, assim, o quão atual é o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) descrito em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, publicado em 1936. Leirner é, sem dúvida, um dos estandartes deste pensamento na arte brasileira. Enfant terrible do circuito, ele traz em seu trabalho a desmistificação da própria arte, assim como Marcel Duchamp a fez antes dele.
Para o artista, sua própria produção é dividida em antes e depois do falecimento de seu pai, o empresário têxtil Isai Leirner, que, ao lado da mulher e mãe de Nelson, Felicia, formavam um dos casais que mais incentivaram as artes em São Paulo durante as décadas de 50 e 60. Foi a própria influência do pai no meio que acabou por criar o artista que conhecemos hoje: inquieto, contestador e polêmico, que discute abertamente as estruturas do circuito para, de alguma forma, revertê-las.
Para a arte contemporânea brasileira, pode-se afirmar que existe um antes e depois de Nelson Leirner. Sua disposição para “desclassificar” as coisas do mundo, com descreveu o crítico Moacir dos Anjos, misturando valores morais e estéticos atribuídos a elas, fez com que, mesmo não as tornando distintas, tais peças tivessem a pertinência de alcançar valores artísticos e, dessa forma, revolucionar o meio em questão. Assim, acabou por libertar aqueles que vieram depois dele. Destruiu o significado original dos objetos que nos rodeiam para reinventar o verdadeiro propósito da arte – o de ressignificar tudo e todos. Um diálogo visceral perpetuado em uma constante troca com a própria história da arte.
Ana Carolina Ralston
curadora