Nelson Leirner, destruir para reinventar

Nelson Leirner
Em São Paulo de 04 de março a 30 de abril 2021

Desmistificada, a obra de arte cai do pedestal. À sua espera está Nelson Leirner (1932-2020), herói de nossa gente – ou melhor, nosso anti-herói. Assim como Macunaíma, Leirner burla, desconversa, recria, provoca, apropria-se, “destrói para salvar”, como definiu certa vez o crítico Tadeu Chiarelli. Derrubar e problematizar as verdades estabelecidas servem também para reconstruir e corrigir, palavras de ordem para o ano que se inicia. O primeiro sem o humor ácido de Leirner, mas que promete celebrar e exaltar sua prolífica trajetória, agora póstuma, que começa com a mostra organizada na AM Galeria de São Paulo, com obras que percorrem as produções que vão dos anos 60 às atuais.

 

 Diferentemente do personagem criado pelo poeta e escritor brasileiro Mário de Andrade, em 1928, desprovido de caráter e ética, Leirner traz luz à verdade. Está comprometido em mostrá-la para curar as mazelas do mundo. Sua dureza oprime, mas também engrandece. Nomeia referências, não esconde o coletivo – aliás não esconde nada. Reforça a ideia de que é na mente do artista que está a verdadeira criação, não propriamente em suas mãos: o conceito sempre nasce antes e, a partir dele, a obra, que pode ser reinventada a partir de outra arte ou da não-arte. Ironiza abertamente o que julga ruim e também o que acredita ser bom. Reafirma que as mudanças operadas pela modernidade vêm mexendo há décadas com o status que torna cada produção artística uma obra única.

 

A reprodução, e consequentemente sua reinterpretação, deixam de ser tratadas como meras cópias para serem pensadas como obras em si. Mostrou, assim, o quão atual é o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) descrito em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, publicado em 1936­. Leirner é, sem dúvida, um dos estandartes deste pensamento na arte brasileira. Enfant terrible do circuito, ele traz em seu trabalho a desmistificação da própria arte, assim como Marcel Duchamp a fez antes dele.

 

Para o artista, sua própria produção é dividida em antes e depois do falecimento de seu pai, o empresário têxtil Isai Leirner, que, ao lado da mulher e mãe de Nelson, Felicia, formavam um dos casais que mais incentivaram as artes em São Paulo durante as décadas de 50 e 60. Foi a própria influência do pai no meio que acabou por criar o artista que conhecemos hoje: inquieto, contestador e polêmico, que discute abertamente as estruturas do circuito para, de alguma forma, revertê-las.

 

Para a arte contemporânea brasileira, pode-se afirmar que existe um antes e depois de Nelson Leirner. Sua disposição para “desclassificar” as coisas do mundo, com descreveu o crítico Moacir dos Anjos, misturando valores morais e estéticos atribuídos a elas, fez com que, mesmo não as tornando distintas, tais peças tivessem a pertinência de alcançar valores artísticos e, dessa forma, revolucionar o meio em questão. Assim, acabou por libertar aqueles que vieram depois dele. Destruiu o significado original dos objetos que nos rodeiam para reinventar o verdadeiro propósito da arte – o de ressignificar tudo e todos. Um diálogo visceral perpetuado em uma constante troca com a própria história da arte.

 

Ana Carolina Ralston
curadora