Grupo “Entre” + Desali

Grupo
de 15 de setembro a 16 de outubro

GRUPO “ENTRE” + DESALI

Já não era sem tempo a chegada do coletivo “Entre” em São Paulo, mesmo que sob a forma de fragmentos de uma intervenção urbana, uma deriva, apresentada no espaço da Galeria AM, uma sala acoplada a outra menor, no primeiro andar de um prédio de escritórios situado no elegante bairro do Itaim. Mas o “Entre” não perde oportunidade de marcar sua presença, de ocupar todo os espaços possíveis, preferencialmente o espaço urbano, isso desde o princípio, em 2006, quando o grupo se formou na Arena da Cultura, no centro de BH, no ateliê de grafite coordenado pelo Rui Santana, congregando jovens artistas da vasta periferia daquela metrópole, que perceberam na arte um caminho possível de expressão, protesto e alegria, incluindo o Desali, entre os artistas mais relevantes de sua geração, que foi quem me contou essa história. Nascido e morador do município de Contagem, na grande BH, na altura de 2006 Desali já estava acostumado com os colegas e professores da Escola Guignard, faculdade de artes onde estudava, onde demorou um pouco para entender os códigos refinados da arte moderna e contemporânea, até esbarrar em obras como as de Jean Michel Basquiat, atravessadas por signos e cicatrizes da cidade, assunto que lhe tocava diretamente, ele que vinha do grafite e do pixo. Era um pé na Guignard e outro na Arena, junto com o Loreno, o Guima, o Palestina, o Gton, o Mosh, o Mario Rufino, outros mais, afinal tratava-se de um coletivo aberto, todos comprometidos em discutir e problematizar, pela via da arte, da plasticidade da linguagem artística, a exclusão social, a segregação, a violência sistemática por parte do Estado cúmplice e que tem como alvo especialmente os jovens das periferias pobres. A estratégia encontrada para o enfrentamento dessas questões foi o desenvolvimento de derivas, incursões tramadas pelo centro de BH.

 

O termo deriva, como muita gente sabe, tem a ver com a Internacional Situacionista, coletivo internacional de artistas surgido na efervescente década de 1950, com repercussões no maio de 68 parisiense, uma virada na história política francesa. Como definiram em 1954 dois de seus fundadores, os franceses Guy Debord e Jacques Fillon, “As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos deriva. A deriva é uma técnica de andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário.”  A noção de deriva estava no ar e inspirou muita gente, aqui no Brasil desde os anos 1960 alguns dos artistas mais radicais realizaram ações urbanas que bem poderiam ser aparentadas com elas, como Helio Oiticica, Paulo Bruscky, Artur Barrio, Luiz Alphonsus, entre outros, a maior parte deles, diga-se, alheio a essa genealogia europeia. Mais adiante, em São Paulo, no final dos anos 1970, ainda sob a ditadura, o grupo 3NÓS3, de Hudnilson Jr., Rafael França e Mario Ramiro, ensacaram estátuas e bustos, utilizaram o espaço das avenidas como suporte de intervenções. Ações clandestinas, realizadas madrugada adentro, como as dos grafiteiros e, mais radicalmente, dos pichadores, estes ainda hoje perseguidos pela polícia doriana, tratados como bandidos por afrontarem uma cidade que insiste em exclui-los.

 

Como se pode ver pela significativa documentação fotográfica apresentada nas paredes da Galeria AM, as derivas propostas pelo “Entre” são de outra ordem, de que são exemplares o carrinho que protagonizou a mais recente delas, a primeira desde o começo da pandemia, e que os intrépidos Desali e Palestina estacionaram no centro da sala da AM. Produto típico da engenhosidade forjada no trato com o precário, tão comum nas periferias das nossas grandes cidades e nos rincões pobres dispersos pelo nosso país, o carrinho, heroicamente empinado como um cavalo por dois cabos que o prendem a viga que corre no teto, tem como chassi os restos de uma cama de solteiro e quatro rodas desiguais, um par de rodas maiores de bicicleta, dessas encontradas em ferro-velho e lixões, numa ponta; e na outra ponta duas menores, com pneus de borracha e estrutura metálica novinhos, possivelmente os únicos itens comprados, emendados à cama por meio de uma estrutura feita por tábuas de madeira reaproveitadas. Sobre a cama há um colchão de espuma arruinado e dobrado, uma mangueira sanfonada amarela, garrafas pet de dois litros, pneus, tranqueiras variadas e indiscerníveis, e uma espécie de touceira esfrangalhada feita de galhos secos, encontrados na rua, provavelmente em caçambas de lixo, enfeitado com uma fita branca chamuscada de tinta vermelha espreiada sobre ela. Na frente do carrinho, apoiada no que um dia foi a cabeceira da cama, uma tevê de tubo de vinte polegadas, passa o filme da ação ocorrida em agosto, portanto há pouco mais de um mês, entre às duas da tarde e às sete da noite. Acompanhados por dois bailarinos do grupo Cultura do gueto, Palestina e Desali saíram do bairro da Lagoinha em direção ao centro de BH, empurrando o carrinho, convocando os curiosos à ação, a se juntarem ao grupo alegre e simples como os saltimbancos dos primeiros filmes de Fellini, improvisando construções, esculturas e instalações fugazes a partir dos objetos e materiais que iam encontrando, todas elas dotadas de sentido crítico. Afinal, fazer do lixo a matéria prima do trabalho, por si só garante a linhagem política de seu trabalho, ao mesmo tempo em que comprova que a arte é um ser em movimento contínuo.

 

Para que não se tenha dúvida do engajamento do trabalho, o visitante deverá prestar atenção no que Desali apresenta na sala ao lado, suas extraordinárias colagens e pinturas sobre jornal, todas realizadas em linguagem ágil, ávida e experimental, invariavelmente tratando do áspero cotidiano vivido pela maior parte da população brasileira, com destaque a comunidade negra. E é certo que se surpreenderá com a obra Doa-se Terra, ocupando o chão e a parede diante do carrinho. No chão, justapostos como uma instalação minimalista, uma coleção de tijolos artesanais numerados pelos mesmos Palestina e Desali, com varetas enquanto o barro estava fresco, como conta um outro vídeo sobre o processo de produção do trabalho. Ao lado das linhas e colunas de tijolos, encostado na parede, há um pequeno embrião de um muro encimado com cacos de vidro, personagem corriqueiro da paisagem urbana, um dos signos clássicos, de agressividade tão frágil quanto ridícula, da proteção das posses. Doa-se terra faz eco ao clamor do Movimento dos Sem-terra, rurais e urbanos, em sua luta perpétua pelo direito a uma casa, no caso das ocupações urbanas, pelo direito de ocupar os incontáveis imóveis cinicamente desocupados à espera de valorização, indiferentes aos impostos devidos, acobertados que são por leis discricionárias. Esse trabalho, ao contrário do que se espera do mercado de arte, não está a venda. O visitante pode apenas escolher o tijolo com o número de sua preferência para que os artistas, simpática e generosamente, empacotem-no e firmem com carimbos e assinaturas o certificado de propriedade. No que diz respeito à esfera artística, uma conduta como essa ensina sobre que efetivamente tem importância.

 

Agnaldo Farias