DESMANCHE – verbocorpopintura

Leonora Weissmann
de 20.10 a 19.11.2022

O trabalho de Leonora Weissmann constrói-se a partir de uma relação entre momento e memória. Ao sugerir essas duas palavras, devemos pensa-las no quanto elas ganham realidade de diferentes modos. Essa oscilação se dá por exemplo na dualidade do erotismo, tão marcante em sua obra: à brevidade da experiência amorosa o corpo guarda-a impressa nele; mas, não menos importante, o erotismo é intrínseco à própria arte e sua história, seja como gênero artístico ou, em uma camada mais profunda como duplo da criação ou ainda como o conquistar da consciência de si e das consequências que isso traz, se lembrarmos do filósofo francês Georges Bataille em seus ensaios sobre Lascaux e sobre o erotismo. A arte separar-nos-ia da natureza, investindo-nos da subjetividade; mesmo ponderando que seus objetos mais distantes eram funcionais, a subjetividade persistia, naquilo em que eles eram também simbólicos, dotados de um sentido que não é dado imediatamente pela natureza – isto é, eles ativam um prazer (ou uma sensação de um modo geral) que se descola do instinto, por assim dizer, sem necessariamente perde-lo em seus níveis sublimados no ser. Mas essa emancipação traz também a consciência da morte e, talvez não seja descabido pensar o quanto a obra de arte com frequência se viu frente a sua condição de sobrevivência e memória, ao lembrarmos o quão longamente ela era associada ao desejo de perenidade.

 

Nossa intenção ao remeter a questões de uma extensão que até mesmo nos ultrapassa é propor uma perspectiva sobre o recorte da produção da artista presente na exposição Desmanche – verbocorpopintura. Pensada em diálogo com o livro monográfico dedicado a Leonora, ao juntar trabalhos novos – pinturas, desenhos, móbiles – com outros de períodos anteriores de uma trajetória de mais de uma década, permite prospectar diálogos e, insisto na palavra, suas várias formas de cristalizar memórias, memórias que são as próprias camadas internas da visualidade e de seu impulso pictórico. Nesse universo plural, ela ganha corpo na sua releitura das paisagens de Brueghel, ou em seus autorretratos sobre livros de história da arte e assuntos diversos, como pequenas anotações que fazemos numa leitura. Questão semelhante permeia os retratos, seja quando eles parecem um registro franco de um “alguém esteve ali” – nada estranho a fotografia, mas que busca ao mesmo tempo outra coisa, que é um manejar “cézanneano” da matéria, fazendo com que a construção da pincelada seja um contínuo comentar do momento –, seja quando eles deflagram vários outros elementos como aqueles inseridos na cena (como o motivo “egípcio” ou um repertório da história da pintura, notados, respectivamente em Retrato de Ilessi e a parreira egípcia e Gravidez) ou que dela se desprendem, exemplificada na “órbita” de pequenas pinturas em torno de Retrato de Ilessi – Quebra-cabeças.

 

Dualidade e metonímia são uma tônica dos autorretratos. Ela aparece diretamente no contraponto à caveira em um deles, prosseguindo a reflexão da vanitas explorada pelas pinturas de natureza-morta (cujo nome, em inglês, alemão e holandês enfatiza o “ainda vivo”, ou, seja-nos permitido extrapolar “Et in Arcadia ego” – e mesmo na Arcádia, eu, a morte, estou presente), enveredando em outro caso (os autorretratos executados em papelão, um suporte casual mas não menos exposto à fragilidade) na antítese entre, em um caso, a imagem que se congela em um suporte quase efêmero, ou, pensando por outro caminho, na serialidade, indicando que um retrato nunca é nem será o retrato, dada a nossa diversidade de humores, temperamento e do entendimento de si mesmo. Por fim, em uma terceira situação, o autorretrato, quando feito na caixa de pintura do pai, cria uma relação especial não só de projeção da sua imagem sobre um objeto afetivo, mas faz igualmente com que a pintura da pintora exista incorporada no próprio “instrumento” da pintura (a caixa), como se a pintura realizada já existisse em potência nos seus meios.

 

O conjunto de paisagens, por sua vez, seria aquele em que a pintura condensa mais fortemente um dobrar-se sobre suas camadas. Se, visualmente, o diálogo delas com a série inspirada em Brueghel é evidente por si próprio, elas investem francamente sobre qualidades como a luminosidade das cores, com variações de planos transparentes aos mais opacos (abrindo uma outra chave para se pensar a ideia de desmanche que dá título a exposição), de pinceladas sinuosas como arabescos que distendem nosso passeio visual dentro do espaço da tela, e de uma alternância entre a profundidade do esquema geral da composição e a proximidade que o gesto da pincelada as autonomiza. Nesse sentido, é plausível falar em um erotismo da paisagem não pelo tema em si, mas por uma relação afetiva que a pintura desperta a cada descoberta conquistada durante o seu fazer.

 

Se a aventura da arte é um lançar-se como pulsão vital a refrear o não menos fascinante assombro do fugaz, ela se instaura como um atravessamento. Tal sentimento se fixa na série de pequenos retratos azuis feitos durante a longa quarentena da pandemia de covid: cada um deles reafirma o seguir em frente – “il suffit d’avancer pour vivre / d’aller droit devant soi / vers tous ceux que l’on aime” [basta avançar para viver / seguir em frente diante de si / em direção àquilo que se ama] (Éluard, 1951) – como um resistir, o sobreviver que a arte potencializa. No entanto, há também um outro atravessamento, o do desejo, como nos envolve o conjunto de móbiles no percurso da exposição.

 

Para Leonora, a arte e o erótico, duas expressões de nossa sensibilidade e potência vital, nascem da mesma força primeira. Desejo, criação, descoberta, vida, morte, história da arte e história pessoal são todas faces reveladoras de nossa humanidade – frágil, convicta, imperfeita, arrojada, serena, cansada, única: a riqueza que nos torna interessantes e merecedoras de figurar – na pintura e na memória.

 

Guilherme Bueno – curador