São duas as exposições. Uma, de Delson Uchôa; a outra, de Luzia Simons. A uma primeira visada, mostras absolutamente distintas: ambas dando notícias das produções recentes de duas trajetórias artísticas originais e já extensas. Exibi-las em simultâneo e avizinhadas, porém, permite que o olhar se distraia de suas evidentes diferenças e confronte inesperadas partilhas e convergências. Um relato dessa paradoxal relação de distanciamento e de proximidade entre as duas obras pode partir de cantos diversos, mas deve tratar, por necessário, das ideias de luz que as fundamentam.
Os trabalhos de Delson Uchôa evocam, em construções feitas sobre lona, a luz do sol a pino. São pinturas que absorvem a claridade intensa da parte do mundo em que o artista vive, no Nordeste do Brasil, e que a devolvem a quem se deixa afetar por elas. É uma luz pintada que pouco se dedica à descrição de figuras ou cenas, sendo antes uma forma singular de registrar fatos físicos, irredutível a qualquer outra que exista. Quase não há, ademais, nesses territórios iluminados que inventa, lugar para sombras e, portanto, para ambiguidades cromáticas. Os limites entre as linhas ou campos de cor de que os trabalhos são feitos são inequívocos, ainda que produzam, nas retinas de quem os olha de variadas distâncias, um amolecimento dessa segurança.
Nas imagens que Luzia Simons cria, por sua vez, não há presença evidente da luminosidade solar. As flores cuidadosamente dispostas sobre fundos que se apresentam como escuros parecem ser iluminadas por fontes artificiais de luz. Partes dos arranjos feitos se acendem, enquanto outros ficam em uma incerta penumbra. Claridade e sombra definem, igualmente, os campos acidentados do que se enxerga ali, em evocação, talvez involuntária, das gradações que a luz natural possui na Alemanha, lugar onde a artista brasileira há tempos vive. Ou que recordam os ambientes pouco iluminados de igrejas barrocas brasileiras que muito visitou no passado. As cores das pétalas, sementes e folhas reproduzidas gradualmente se dissolvem umas em outras ao olhar de quem as vê, ainda que seja certo que as fronteiras que marcam tal mistura estejam ali.
De maneiras divergentes, as obras de Delson Uchôa e de Luzia Simons são, assim, igualmente devedoras de uma atenção extrema à iluminação do que apresentam, sem a qual não teriam a presença de mundo que possuem. Se o primeiro parece se deixar afetar mais pela luz implacável do dia, é razoável afirmar que a segunda elege, como guia quase constante, uma luz próxima àquela que tenta iluminar o escuro da noite. Ainda que em medidas diferentes e não exclusivas, são escolhas atravessadas pela experiência de habitar lugares tão distintos. Atravessadas, também, por tradições diferentes de representar, no campo do sensível, aquilo que existe como coisa ou como sensação de pertencimento do corpo ao mundo.
Também os procedimentos de criação dos dois artistas os singularizam tanto quanto os aproximam. São o que parecem aos olhos e, também, aquilo que não parecem ser. Os trabalhos de Delson Uchôa, fica logo evidente, são construções híbridas que traduzem e aproximam, de modo sempre inconcluso, formações culturais diversas. O interesse antigo pela tradição construtiva da arte se confunde com o encanto pelas formas e cores que informam o cotidiano em seu lugar de vida. Sua produção é impura e de filiação incerta. É também de duração aberta, pois acumula, nas muitas matérias e gestos sobrepostos de que é feita, o tempo necessário à invenção. São diversos os procedimentos de que se vale para criar, como atestam as pinturas que nomeia como “exercícios geométricos vingados”: exercícios que são desafronta do artista perante tudo que acua a arte e, ao mesmo tempo, evidência de algo que floresce e segue vivo. Tomando como suporte tecidos de origens diversas – por vezes já abrigando padrões de cores e traços –, o artista os corta, cola, rasga, sutura e, principalmente, os pinta com paciência. Inventa campos de cor que parecem gerar ruído, ativando o interesse do outro como se olho fosse ouvido. Torce a geometria presente no mundo e na história da arte para exibi-la como pinturas que revelam, quando vistas de perto, serem feitas não somente de ordenados fios pintados, mas também de cordões de algodão, tramas de juta e outras matérias ásperas que, abrigadas sob uma resina lisa, tecem o corpo de seus trabalhos.
Essa ambiguidade posta diante da vista do outro está também presente nos trabalhos que Luzia Simons expõe, os quais poderiam ser confundidos, sob exame superficial e ligeiro, com fotografias feitas em ambiente controlado e escuro. São resultado, porém, de processo construtivo há muito adotado e que chama de “scanograma”: construção de imagens auxiliadas pelo uso criativo de scanners. Sobre as superfícies de vidro dessas máquinas de reprodução eletrônica, a artista dispõe, com paciência, delicados arranjos de flores. Deixa, então, que o aparelho realize, ao longo do tempo que for necessário (horas ou dias), as tarefas de registrar cada aspecto da matéria tridimensional ali deitada e de traduzi-los em imagem plana, impressa digitalmente sobre fina superfície rígida; ou, mais raramente, sobre tecido. Impressa, quase sempre, em tamanhos bem maiores que a matéria orgânica que representa. Todo espaço não preenchido pelas flores, ademais, é transcrito – sob a luz forte do scanner que opera de baixo para cima – como campo de cor preta. Como resultado desse exaustivo mapeamento maquínico de matéria viva, Luzia Simons cria equivalentes sensíveis (imagens impressas) de algo que se transforma a cada instante (e que, portanto, também morre) sem criar hierarquias de foco ou de interesse que o ato de fotografar concederia a uma ou a outra de suas partes. Nesse sentido, o resultado de sua prática se aproxima, estranhamente, mais da pintura, meio que usualmente requer, do artista, cuidado idêntico a toda a extensão do suporte que usa.
Embora as obras dos dois artistas não descrevam fatos da vida em comunidade nem teçam comentários discursivos sobre o estado das coisas públicas no mundo, nem por isso se resumem ao campo da invenção formal. Em suas próprias matérias, bem como nos procedimentos criativos que as geram, já se encontram, entranhados fisicamente nos trabalhos de ambos, relatos e vestígios do entorno amplo do qual fazem parte.
Em pinturas de Delson Uchôa, é possível reconhecer, cada vez com maior frequência, o uso de sombrinhas coloridas como matéria das composições que cria. Em várias destas, o artista recorta, arranja e cola, sobre lonas, os tecidos sintéticos e coloridos que cobrem esses objetos de proteção, descartando seus cabos e estrutura de sustentação metálica. Incorpora, em seus trabalhos, o que chama de “cor-poliéster”, tinta que já existe seca e pronta, como pele que se arranca da carcaça de bicho morto. Com esse tecido-tinta, produz figuras geométricas rígidas ou moles, planas ou rugosas, embora sempre movimentadas. Como se fosse impossível estabilizar o deslocamento de matéria retirada de algo feito para abrigar, do sol ou da chuva, o corpo que corre ou anda. Movimento que também evoca a própria origem dessas sombrinhas coloridas encontráveis, aos milhares, em feiras e mercados de cidades do agreste e do sertão do Nordeste brasileiro que Delson Uchôa conhece tanto. Fabricadas na China, sua ostensiva presença nesses lugares é indício e emblema de uma geopolítica transcontinental que alcança qualquer parte e conecta os lugares mais diversos e distantes, contrapondo-se a modos de fazer antigos e transformando a paisagem cotidiana de muitos. Faz sentido, portanto, que tais sombrinhas de poliéster sirvam de suporte para um trabalho que acolhe o diverso e que se ancora em ideias de trânsito. Que se transformem, através do gesto do artista, ainda em outra coisa, sendo agora parte de um território inventado que é, também, equivalência sensível de um mundo em constante mudança.
As flores representadas nos trabalhos de Luzia Simons também evocam, silenciosamente, características do mundo contemporâneo, incluindo nele o campo da produção artística. Não são quaisquer flores que são reproduzidas com auxílio de scanner e depois impressas em suportes diversos. São, quase exclusivamente, tulipas, espécies comumente associadas à Europa central e, principalmente, à paisagem plana da Holanda, onde existem em abundância. A tulipa, contudo, somente foi trazida para aquela região em finais do século 16, vinda do território que hoje é Turquia e que, à época, era parte do Império Otomano. É planta que acompanha e registra, na sua própria migração de lugar de cultivo – atando oriente e ocidente –, a formação de um mundo que gradualmente se emaranha. Mas é na Holanda, de fato, que a tulipa se torna, no século seguinte, uma mercadoria importante na economia europeia, sendo objeto de especulação frenética e alcançando preços comparáveis a de bens duráveis caros. A esse período de intensa valoração e difusão da flor em várias partes, se seguiu uma queda brusca de seus preços no mercado mundial, causando a ruína de muitos que a adotaram como objeto de troca privilegiado. A tulipa, ademais, é espécie que se hibridiza de forma fácil, existindo inúmeras variações de cores e formas de suas pétalas, ainda que mantendo as características básicas que lhe identificam. Por ter se tornado, ao longo da história, flor vagante e mercantil, é adequado que a tulipa seja tomada como referente principal da obra de Luzia Simons. Sua principal operação criativa, afinal, altera os estados do que já existe e recorda a transformação de quase tudo em coisa a ser consumida. Imagens, inclusive.
Embora estas sejam duas exposições distintas, assim como são muito diferentes as produções que exibem, há nelas um avizinhamento fértil que esclarece as duas. Aproximação que reforça, nas obras de Delson Uchôa e Luzia Simons, uma aderência a lugares precisos de vida e uma abertura a trocas constantes. Ambas formulam modos originais de iluminar o mundo e de se deixar afetar por suas transformações correntes. Obras contemporâneas de seu tempo que indagam o olhar do outro e se abrem a especulações sobre os significados possíveis que tenham.
Moacir dos Anjos