Voltar a casa: fabulações sobre formas migratórias
Cristiana Tejo
Quando Ascânio MMM chega ao Brasil em 1959, Brasília estava prestes a ser inaugurada. “A capital da esperança”, como apelidada por André Maulraux, era o ápice de um projeto de modernização da arquitetura brasileira que chamava a atenção mundial desde os anos 1940, em especial após a exposição e publicação/catálogo de Brazilian builds: architecture new and old 1652–1942 de Philip L. Goodwin (com fotografias de G. E. Kidder Smith), organizada pelo Museum of Modern Art de Nova York, em 1943. Versões da exposição itineraram por várias cidades norte-americanas e brasileiras, além do Canadá, México e Inglaterra, mas foi a publicação que cumpriu o papel de grande disseminadora mundo afora, incluindo Portugal. Apesar da raridade nas bibliotecas locais, “Brazil builds” teve um grande impacto na arquitetura portuguesa, a ponto do arquiteto Maurício de Vasconcellos chamá-la de “segundo Vignola”.[1] O ambiente de experimentação arquitetônica do Brasil destoava do conservadorismo que imperava no Portugal de Salazar, o que atraía a atenção e o entusiasmo dos arquitetos lusitanos mais progressistas. Segundo Nuno Portas, em seu livro A evolução da arquitectura moderna em portugal: uma interpretação (1978), um dos fundamentos da criação da Escola de Arquitetura do Porto, foram os “ensinamentos de Le Corbusier, vistos sobretudo pelo seu reflexo brasileiro”.[2] Essa influência é pouco conhecida e reconhecida nos dois lados do Atlântico. Como nos lembra Boaventura de Sousa Santos,[3] Portugal tem uma posição semiperiférica no sistema capitalista moderno mundial e isso pode explicar tanto o desinteresse da ex-metrópole em assumir essa influência da ex-colônia como a ex-colônia buscar validação nos centros hegemônicos, ignorando seu colonizador “desimportante”.
Em seu incontornável estudo sobre a trajetória de Ascânio, Paulo Herkenhoff[4] relata-nos sobre o primeiro contato do artista com a arquitetura moderna ainda em Fão, sua terra de origem, no Norte de Portugal. Trata-se da Casa de Ofir (1951) projetada pelo arquiteto Armênio Taveira Losa (1908–1088) e visitada por Ascânio em sua adolescência[5] O espaço aberto no interior, a disposição da casa no terreno e os móveis modernos eram um forte contraste com a arquitetura tradicional portuguesa e principalmente com a estética fomentada pelo regime salazarista. Talvez não fosse disparatado fabular que Ascânio encontrou o Brasil antes de imigrar. Que o atravessamento sentido por ele ao adentrar aquela casa modernista antecipava o tipo de experiência sensível e política que ele vivenciaria no Rio de Janeiro no final dos anos 1950.
Apesar de conhecer a importância histórica de Ascânio MMM para a arte contemporânea brasileira, eu só havia visto seus trabalhos por meio de catálogos e livros ou de dentro de táxis em movimento quando visitava a cidade maravilhosa. Não havia tido a oportunidade de me deparar demoradamente diante de obras suas até dezembro de 2020, na Galeria 111, em Lisboa, poucos dias antes de um novo e severo confinamento devido à terceira onda da Covid 19. Esse encontro tardio ocorrido no país de origem de um dos principais nomes da escultura contemporânea brasileira e onde estou radicada há alguns anos e num momento de vertiginosa transformação social, política e espacial impactou minha experiência e apreensão de seus trabalhos mais recentes.
Escrever sobre arte num momento de intenso debate social e buscar decolonizar os parâmetros e metodologias da história e das teorias da arte é uma empreitada complexa, mas necessária. Esse processo que ocorre nos mundos anglófonos, francófonos e hispânico há algum tempo tomou de assalto o Brasil nos últimos três anos e começa a chegar a Portugal, país com a mais longa história colonial e sofredor de um severo estado de denegação de seu passado. Compreender as histórias entrelaçadas de Brasil e Portugal sob a ótica da história de longa duração de Fernand Braudel[6] pode ser uma chave de elucidação das estruturas de nossa colonialidade[7] em português porque trata-se de um quebra-cabeça cujas peças foram espalhadas geograficamente e parte de seus rastros apagados. Portanto, interessa-me conectar alguns desses fios soltos na circulação e trocas entre (ao menos) esses dois países, especialmente por Ascânio MMM ser um agente notável nessa relação. Como também relembra Herkenhoff, Antonio Manuel, Artur Barrio e Ascanio são uma tríade de origem portuguesa da maior importância para a cena artística contemporânea brasileira, cuja presença no Rio de Janeiro deu continuidade ao papel dessa cidade como espaço de trocas culturais entre os dois países.
Os números que abrangem os principais grupos de imigração para o Brasil apontam que de 1870 a 1972 os portugueses foram a comunidade mais expressiva dos recém-chegados, representando 31,1% do total, seguidos pelos italianos (30,3%), japoneses (4,6%) e alemães (4,2%).[8] Apesar desses dados, a presença portuguesa no Brasil é quase invisível não apenas nas narrativas históricas do século XX, mas principalmente na historiografia da arte brasileira quando comparada à italiana, alemã e japonesa. O perfil dos imigrantes portugueses pode ser um segundo fator nessa invisibilidade (o grupo social de liderança era formado por trabalhadores de baixa qualificação e comércio), além da já referida colonialidade e seus desdobramentos contemporâneos. A família de Ascânio enquadrava-se nesse perfil migratório, sendo o comércio o primeiro trabalho exercido por ele no Rio de Janeiro, mas em alguns anos ele já se encontrava na Escola Nacional de Belas Artes (e na sequência na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) e frequentava o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (lugar de sociabilidade fulcral para os jovens artistas). Nesse profícuo ambiente, o artista entrou em contato com um rol de conhecimentos que estruturaram a sua pesquisa, tais como o neoconcretismo, a abstração e a arquitetura, e passou a fazer parte da paisagem artística das neovanguardas brasileiras. Apesar do pano de fundo da ditadura civil-militar brasileira nas primeiras duas décadas de sua trajetória, ele encontrou no Brasil um terreno fértil de desenvolvimento e experimentação de sua pesquisa.
Olhar uma obra mais recente de Ascânio MMM requer que a percebamos como mais uma etapa na construção de um edifício que já dura quase 60 anos. O que vemos em 2022 é o resultado de um raciocínio engendrado na base formada pelos princípios construtivos e pelo rigor da arquitetura que foi ganhando novos desdobramentos a partir da experiência do fazer. Todas as etapas de suas obras ocorrem no ateliê, desde o desenho e a maquete até a sua execução final. Durante muitos anos, Ascânio sequer tinha assistentes. É nesse contato direto com as questões práticas da feitura de cada peça que sua obra acontece, numa espécie de pedagogia do objeto de arte. Em uma de nossas primeiras conversas pelo Zoom,[9] ele relembrou o deslumbre que a artesania da construção de Alexander Calder lhe causou. Tomar conhecimento dessa referência e da sua metodologia de trabalho fez-me lembrar das colocações de Richard Senett a respeito da artesania e o preconceito do Ocidente com a conexão cabeça e mão:
Habilidade artesanal designa um impulso humano básico e permanente, o desejo de um trabalho benfeito por si mesmo. Abrange um espectro muito mais amplo que o trabalho derivado de habilidades manuais; diz respeito ao programa de computador, ao médico e ao artista; […] O artífice explora essas dimensões de habilidade, empenho e avaliação de um jeito específico. Focaliza a relação íntima entre a mão e a cabeça. Todo bom artífice sustenta um diálogo entre práticas concretas e ideias; esse diálogo evolui para o estabelecimento de hábitos prolongados, que por sua vez criam um ritmo entre a solução de problemas e a detecção de problemas.[10]
A desestigmatização da relação mente (racionalidade) e mão (manualidade) pode ajudar-nos a descompartimentar o corpo conforme a perspectiva ocidental. Ascânio não usa o computador para projetar seus trabalhos, pois enquanto traça com lápis no papel, num gesto lento, ele pensa e especula. A corporeidade em sua obra inicia-se, portanto, na experiência táctil do tracejar e continua no manejo dos materiais, que no caso de sua produção mais recente é o alumínio,[11] metal associado à construção civil e à indústria. Apesar do resultado remeter-nos a peças industriais, a sua montagem passa pelas mãos (e mente) do artista. A incorporação da parte de trás na obra Quacors 21, por exemplo, ocorreu no fazer da obra. Ao serem expostas, suas esculturas pictóricas (ou seriam pinturas escultóricas?) passam a ativar a corporeidade do público. Mesmo as Quacors que são colocadas mais rente à parede requerem a participação ativa de nosso corpo, pois há uma questão rítmica que emerge na espacialização e distribuição das cores nos módulos dos trabalhos. Se nos colocamos defronte a Quacors 18 a uma certa distância, nossa visão é dirigida para a leveza da estrutura modular vazada. Os parafusos, que têm uma dupla função (estrutural e visual), imprimem uma suave cadência. Mas há um outro elemento sutil que contribui para a sensação rítmica: as cores amarelo, azul e cinza aplicadas nas laterais externas de alguns módulos. A presença vibrátil das cores vai ganhando mais nitidez à medida que nos aproximamos do trabalho. No entanto, é necessário deslocarmo-nos não apenas para frente e para trás, mas também para os lados. Com o nosso movimento conseguimos notar o ritmo criado pelo conjunto de forma, estrutura e cores distribuídas pelo grande quadrado.
O termo quacors advém da fusão das palavras quadrados e cores (qua/cors) para exprimir abertamente as questões constitutivas da série. A unidade inicial é o módulo quadrado de 5cm que vai sendo acoplado pelos parafusos de 5,08mm (medida inglesa) a outros módulos para constituir formas geométricas dentro do grande quadrado. O artista utiliza o material industrial que segue tabelas internacionais e isso impacta também nas cores que totalizam trinta tons. Porém, as possibilidades combinatórias ampliam-se com o jogo entre vazio e cheio, ou seja, quando as cores são membranas (invólucro) ou corpos (núcleo). Por vezes as membranas são isolantes, pois formam linhas que delimitam, apartam espaços. A cor cinza da estrutura capta e reflete as cores do entorno, absorvendo o espaço externo. Ocasionalmente ela encapsula seu próprio espaço. Há ainda a relação entre brilho (do alumínio) e a opacidade das demais cores. Quacors traz novas camadas para a afirmação de Herkenhoff de que a cor é forma nas esculturas de Ascânio.
No meio da galeria encontram-se os Prismas, trabalhos mais arquiteturais que também partem dos módulos de alumínio. Na geometria, os prismas são sólidos geométricos compostos por bases, faces, arestas, vértices e diagonais. Porém a palavra também carrega um sentido figurado que significa ponto de vista, aspecto e perspectiva. Talvez por ser o ponto inicial da trajetória de Ascânio MMM e de tê-los visto pela primeira vez em Portugal, antigo domicílio do artista e minha atual morada, identifiquei-os com elementos de uma casa: porta (prisma quadrangular — Prisma 2), janela (prisma pentágono — Prisma 3) e escada (prisma triangular — Prisma 4). Essa constelação de trabalhos não tem cores agregadas e sua dinâmica reside no encadeamento dos módulos que geram as formas supracitadas. A distribuição ocorre por meio das direções diagonal e vertical, na sobreposição de camadas que formam tramas e no apoio da base. Das três esculturas, Prisma 3 e Prisma 4 apoiam-se na quina dos módulos, quase que em suspensão, em estado de flutuação. Prisma 2, por sua vez, está assentada na base do quadrado, o que transmite uma sensação de solidez. Essa é a única obra em que podemos entrar. A estrutura é composta por duas entradas que formam um curto corredor que nos remete a uma arquitetura de contenção, de disciplinamento corporal: prisão, grade. Seria muito simplório associar essa construção ao Portugal da infância e juventude de Ascânio MMM ou ao ambiente político atualmente no Brasil? Assim como na Casa de Ofir, o espaço ao redor dos prismas é amplo e permite que nosso corpo os explore com liberdade.
O conjunto Quacors e Prismas, etapa mais recente desse imenso e sólido edifício que Ascânio MMM tem criteriosamente erigido em quase seis décadas, será mostrado pela primeira vez em Belo Horizonte, cidade que acolheu inauguralmente as experimentações arquitetônicas de Oscar Niemeyer, no ano do bicentenário de independência do Brasil e do centenário da Semana de Arte Moderna. Essa presença nesse contexto parece iluminar muito mais do que o percurso de um dos grandes artistas brasileiros, mas principalmente os intricados entrecruzamentos que instituem a história da arte de nosso país.
Lisboa, fevereiro de 2022
[1] Ramos, Tania Beisi; Matos, Madalena Cunha. Recepção da arquitectura moderna brasileira em Portugal: registos de uma leitura. 6º Seminário Docomomo Brasil, 2005, p. 7.
[2] Id., p. 15.
[3] Santos, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010.
[4] Herkenhoff, Paulo. Ascânio MMM: Poética da Razão. São Paulo: BEI Comunicação, 2012.
[5] Ib., p. 24.
[6] Segundo Braudel, a história de longa duração abarca o tempo das estruturas que duram séculos. Sob essa perspectiva, podemos pensar que a história colonial persiste em estruturas duráveis. Aníbal Quijano (2009) ensinou-os que apesar da colonialidade estar vinculada ao colonialismo, ela é mais profunda e duradoura do que este último. Ela sustenta-se na imposição de uma classificação étnica e racial como base de padrão mundial do poder capitalista.
[7] Quijano, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: Meneses, Maria Paula; Santos, Boaventura de Sousa (orgs.). Epistemologias do sul. Coimbra: G.C. Gráfica de Coimbra, 2009.
[8] Lesser, Jeffrey. A invenção da brasilidade: identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Unesp, 2015.
[9] Conversa ocorrida no dia 5 de agosto de 2021.
[10] Sennett, Richard. O artífice. 2ª ed. Trad. de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 19-20.
[11] Material usado por Ascânio MMM desde os anos 1990 em suas peças para espaços abertos.