SILÊNCILUZ ou,
Sobre os trabalhos de Andrey Rossi
À primeira vista, a luz parece ali ser o último resquício a abandonar a cena de um drama. Restaria apenas a imagem silenciosa, que não sabemos dizer se reverbera melancolia, ausência ou desolação. Poucos passos adiante e tudo muda de figura na obra ao lado: permanece uma certa aura de mistério, mas ela confronta com a minúcia e o cuidadoso texto descritivo que legenda as imagens, realizadas com o escrúpulo científico de um naturalista aventureiro. Do teatro encerrado na tela, vemo-nos agora diante do sublime das paisagens registradas no papel. Mas será que estamos realmente (ou até que ponto) diante de um drama? Talvez o mais correto seria examinar se não se trata de imagens em pausa, nas quais transpira na atmosfera um acontecimento recém-findo e a última a deixa-lo é a luz que escorre serpenteante sobre paredes, objetos e insinua-se como o próprio ar em fuga.
Para entrarmos nessas cenas, precisamos especular quem ou o quê se retirou delas. Há rastros dos séculos de ouros da pintura holandesa e espanhola ali impregnados: estaríamos como se diante do gabinete do Geógrafo, mas sem ele. Ou da sala pouco após na Lição de Música se desferir o último acorde – a energia do evento calidamente se dissipa e a onda das notas se fragmenta ao choque contra as paredes, ao tentar infiltrar-se em suas fissuras. Porém, nada mais está ali, tão somente uma sombra que é o clarão de luz. Ela silencia: nem promete a alvorada, nem lamenta o crepúsculo; apenas está, indiferente a duração indefinida de um tempo só seu. Consideremos a luz que banha essas naturezas-mortas com sua quietude tão afeita a Zurbarán: o fundo em tom escuro isola os objetos do mesmo modo (mas em sentido oposto) perpetrado pelas cores vibrantes que circundavam os personagens de uma pintura romana antiga, suspendendo-as em um espaço imensurável, pois que aparentemente se extensão (ou, quem sabe, todo extensão); a relação lenta entre luz e penumbra esculpe a um só tempo a solidez volumétrica e muda de alguns objetos e a transparência de outros. Ademais o ardil temporal reside no anonimato desses objetos industriais que ali posam / pousam: falta-lhes a elegia nostálgica e antitética do luxo do Memento Mori no subgênero da Vanitas das naturezas-mortas (ou, “ainda viventes”, “viventes silenciosas”, se considerarmos sua terminologia anglo-germânica e as ambiguidades portadas nela – still life, Stillleben, stilleven) ou a última ironia moderna de “ser do seu próprio tempo” das sopas Campbell’s e garrafas de Coca-Cola da Pop Art. As flores – artificiais? – fenecem em copos de vidro produzidos em série que têm a mesma aparência há cinquenta anos – tudo, portanto, evoca um tempo à procura, em busca.
O espaço é a própria luz, ora refletindo nas paredes, ora atravessando vidraças trincadas, ora preenchendo o vazio. Sim, há um teatro – o teatro da luz. Mas, ela (a luz) é cenário e atriz, ação em curso e as distâncias entre as coisas, assim como entre nós e o que vemos.
Nada disso obsta o fato de se tratarem de espaços descritos. No que pode soar enigmático ao espectador, qualquer desses interiores – até certo ponto levando-nos a perguntar se importa eles existirem na realidade, ou se eles sobrevivem justamente por terem sido incorporados como temas da pintura de Andrey Rossi – têm uma concretude tácita e objetiva. Contudo (e aqui reside o enigma) o artista consegue ali cristalizar tudo o que é subliminar e fugidio. Em outras palavras, tudo que ali há de metafórico e evocativo é entranhado na imagem com o mesmo rigor e precisão com que a linha descreve uma mesa, uma porta ou o rendilhado de uma tolha. E aqui perfaz-se um ponto de encontro com as obras sobre papel, cujo motivo principal é a paisagem. Familiares aos registros de pintores-viajantes, dada a correlação estabelecida entre o que está representado e o que é descrito nos textos que lhes servem de legenda, delas irrompe, no entanto, algo dotado de um aspecto indescritível – os céus carregados prenunciam tempestades. Resta saber se elas suscitam terror; se isso vier a ocorrer, ele não é nem óbvio, nem imediato: aparentado ao sublime dos românticos, ele, por outro lado, também é muito mais a realidade dos ciclos do mundo, a menção às forças do tempo (tempo aqui entendido como fenômeno natural e igualmente como cronologia) – aquele mesmo testemunhado nas telas, à diferença de que, se as telas nos trariam o “isso foi”, nas paisagens vivenciamos a iminência do que está por vir. A economia gestual da fatura límpida, disfarçando as sucessivas etapas de gestação da pintura, diluem qualquer traço evidente de um fazer que fornecesse indícios ou vestígios da sequência que gestou a imagem, reforçando o estado de suspensão que encarnam. Por outro lado, podemos também dali vislumbrar, na verdade, um tempo intersticial. Para entendermos esse tempo da imagem e seu correlato tempo na imagem, podemos recorrer a uma analogia, não muito familiar, mas cuja textura brumosa mostra-se providencial: em determinados idiomas de origem remota (como o grego antigo), existe um tempo verbal denominado aoristo, que descreve uma ação sem indicar sua duração, nem conclusão ou repetição, isto é, a princípio, configura o permanente transcurso do tempo, é o tempo exercendo sua temporalidade. As obras de Andrey Rossi, creio, aproximam-se dessa situação: são imagens em aoristo, a instigar-nos o mistério que ronda a clareza de coisas reveladas por uma luz nítida que descortina um mundo turvo.
Guilherme Bueno