A pele da casa: pintura em que habito

Delson Uchôa
01.11.14 a 29.11.14

A AM Galeria de Arte tem o prazer detrazer a Belo Horizonte a individual do pintor Alagoano Delson Uchôa [Maceió, Alagoas, 1956]. Um dos mais importantes pintores brasileiros da atualidade, proveniente da chamada “Geração 80” [artistas que participaram da expressiva exposição Como vai você, Geração 80? no Parque Lage, Rio de Janeiro em 1984 – mostra que trouxe à tona a produção variada da década e que lançaria toda uma geração], e extremamente atuante desde então no circuito artístico nacional e mundial. Delson já representou o país no Pavilhão Brasileiro da Bienal de Veneza de 2009, participou da histórica XXIV Bienal de São Paulo de 1998 curada por Paulo Herkenhoff, de Bienais em Cuba, Egito e exposições pelo Brasil e pelo mundo. Possui obras em importantes coleções, como Pinacoteca do Estado de São Paulo, Instituto Inhotim, Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Vogt Collection, Alemanha, entre outras.

Depois de seu trabalho dar a volta ao mundo ele volta a Belo Horizonte, cidade especial onde parte de sua historia começou. Delson se formou médico e partiu logo após a conclusão de seus estudos para Paris onde os pincéis substituíram os bisturis. Voltando ao Brasil fixou residência em Belo Horizonte, em 1983, onde sua família mineira o acolheu e aqui ficou por meses trabalhando intensamente e realizando exposições na cidade. Daqui se mudou para o Rio de Janeiro e se juntou a uma turma jovem e atuante de artistas. Por lá ficou um tempo até retornar à sua cidade natal, Maceió. Desde então vive e produz na cidade.

“Atenção ao dobrar uma esquina
Uma alegria, atenção menina
Você vem, quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte”

Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968

Arte e Vida
Falar do trabalho de Delson Uchoa é um desafio; uma aventura maravilhosa. Não pretendo aqui de forma alguma trazer algo fechado e sim o início de uma conversa que pretendemos que seja longa e duradoura. A complexidade de sua obra gera tantas questões e abre um leque enorme de possibilidades sobre a arte brasileira, sobre pintura – essa tão generosa rainha das artes – e sobre a vida dos artistas. Difícil até saber por onde começar. Comecemos então pela experiência iluminadora de conhecer o ateliê e o método de trabalho do artista. Em sua obra arte e vida estão intensamente misturadas, o ateliê-casa, o chão-tela. Delson desenvolveu quase que por acaso a chamada tela cultivada: ele aplica camadas espessas de resina no chão de casa que se solidifica com tempo formando uma espécie de pele por sobre a qual o artista vive durante meses. Essa pele é retirada cuidadosamente do chão de lajota cor de terra e se torna o suporte para muitas de suas pinturas. Essas pinturas por sua vez sofrem cortes, recortes, enxertos de outras pinturas, incisões, costuras dessa pele. É o encontro do médico com o artista, o cirurgião nas artes. Nas obras Adamastor Capibaribe e Jardim interno encontramos essas costuras, sobreposições cirúrgicas e um pouco da pele da casa.

Além disso, o mergulho intenso na produção, intensificado por estar fora do eixo das artes do sudeste – o que sem dúvida contribuiu para esse fervor artístico singular – encontramos obras que são trabalhadas durante décadas em um processo autofágico de se refazer de tempos em tempos. Obras realizadas na década de 80 são complementadas tempos depois, aumentam de tamanho, ganham história, representam a trajetória do artista, sua reflexão sobre a própria arte e o fazer. A Noite, obra iniciada em 1988 e finalizada em 2010 é uma boa referência presente na exposição.
Quem é Adamastor?
Uma das grandes contribuições da arte é justamente levantar questões, perguntas, dúvidas. Adamastor pode ser o gigante da mitologia Greco-romana presente nos versos de Luis de Camões em Os Lusíadas, ou em Alexandre Dumas, Bocage e Fernando Pessoa, o filho de Gaia, a força da natureza que afunda as naus, modifica o trajeto, o herói que representa o mais que humano feito, o feito sobrehumano e que sofre de uma doença, o amor. Esse mistério está nas obras mais recentes do artista presentes na exposição Sonoro Adamastor e Adamastor Capibaribe.

Bicho da Seda
O trabalho iniciado em 2011 e em progresso, Bicho da Seda surgiu pelos olhos atentos do pintor ao ver um grupo de pessoas andando nas ruas com sombrinhas coloridas no meio da paisagem de sua cidade. Delson não perdeu tempo. Importou centenas de sombrinhas coloridas da China e começou um percurso pelo sertão nordestino. Sua intenção: pintar temporariamente a paisagem com esses objetos. Delson iniciou ali um caminho que vai além da instalação e da ação. O que vemos é a pintura se expandindo, livre de seu suporte, das tintas e das telas.
A paisagem vira tela e as sombrinhas são as tintas dadas, prontas com as quais o artista interfere na natureza árida. Como todo bom artista nunca está satisfeito Uchôa produz objetos esféricos com as sombrinhas, passa a ser ele mesmo um bicho mutante que anda pelo sertão interferindo na paisagem. Temos aí seu primeiro conjunto de fotografias e filmes.

Natureza, Mitologia e Literatura
Nomes para as diferentes luzes do dia é um bom exemplo de como o artista trabalha. Não há como dissociar essa pintura da natureza. As obras são realizadas em um ambiente semiaberto, de muita luz natural, vento e verde. Uma vez finalizadas [ou não], são fotografadas na areia da praia, pendentes de árvores, no meio do mato, em cercas de madeira ou saídas do mar, como uma divindade que supera em significados o que nossos olhos podem ver. Aí encontro um ponto peculiar e único da obra de Uchôa, o enorme conjunto de significados presentes
em suas obras: mitologia, mapas do céu, radares dos mares, versos da Ilíada, músicas de Caetano Veloso, cartografias imaginárias sonoridades, ilhas de luz, tormentas poéticas, nuvens de tinta, a Flora regional,

Dante e o gigante Adamastor, pangéia brasileira em constante ebulição de signos, tudo é divino maravilhoso. A pintura tem movimento, tem atitude, trata de coisas invisíveis e oníricas, do que está por detrás, do que está por vir, de séculos de histórias da humanidade, da crença na arte e no homem. As tintas fluorescentes e iridescentes mudam de acordo com a luz natural de cada momento do dia até chegar na artificial.
A pintura é viva! Pulsa, se modifica, traz consigo algo além da forma plástica: a história de um homem e suas referências no mundo da matéria, da experimentação e do pensamento.

Sim, uma pintura genuinamente do nordeste, brasileira, do mundo, do além mundo, do extra sensorial, do espírito.
Emmanuelle Grossi