A exposição, cujo nome se inspira no titulo do romance de Goethe, nasce de uma proposta de leitura do acervo da AM Galeria de Arte. Como um conjunto de trabalhos que convivem entre si dentro das salas ou da reserva técnica de uma galeria vai construindo conexões pautadas pela vizinhança por vezes imprevista e, por conta disso, criam e intercambiam significados em suas aproximações ou diferenças?
A diversidade das obras permite uma amostragem de algumas das muitas investidas marcantes da arte brasileira, desde seu último momento moderno (representado por Amílcar de Castro e Franz Weissmann) seguindo até questões da arte contemporânea. Considerados tais aspectos, os diálogos entre artistas são relações singulares, frutos de circunstâncias que vão do pertencimento geracional à história formativa, de proximidades formais a questões conceituais mais abrangentes: é o que transparece, por exemplo, ao pensarmos no convívio de Niura Bellavinha com Amílcar, seu professor e amigo de longa data, levando-nos a reconhecer um interesse comum pelo rastro do gesto (nas litografias de Amílcar e nas pinturas de Niura) ou na presença marcante da cor (considerando o preto de Amílcar como uma compreensão gráfica da cor; enquanto em Niura ela está condensada na materialidade da tinta, ou, no caso das fotos, no grafismo que ela constrói com seus registros – o qual ecoa a presença da cor de suas pinturas); o “corpo gráfico” da cor, com sua sobreposição entre a disposição chapada, uma pictorialidade da fatura e um suporte que por vezes tende a se projetar no espaço abrem um outro eixo de espelhamentos, como percebemos nas obras de Ricardo Homen, ao ladearem as litografias de Amílcar. A cor pode eventualmente se colocar no âmbito da escala – abrindo espaço para outra questão trazida por outros artistas na exposição – ou de sua corporeidade, assinalada seja pela sucessiva camada de planos sobrepostos, seja pela granulação de pigmentos, ou pela rotação do eixo do chassi, que desloca a pintura-objeto do paralelismo neutro junto ao plano da parede.
Se decidirmos observar as combinações a partir das investidas pessoais em uma mesma linguagem, como pintura (Niura, Desali), fotografia (José Pederneiras, Jomar Bragança, Niura), escultura (Amílcar, Weissmann, Estela Sokol), dispomos de um outro caminho no qual se revela o quanto cada uma delas têm sido alvo de perspectivas ora comuns, ora variadas. A escultura de Estela Sokol, por exemplo, transporta a questão da dobra escultórica para além da autonomia do objeto em sua relação com o espaço. A obra de Amílcar e Weissmann, é bem verdade, existem e se sustentam em um espaço físico – os eixos que elas criam entre seus planos se apoiam no chão; ainda assim, esse ponto de apoio é plano e, se assim o pudermos chamar,um fundo infinito, quase neutro. No caso de Estela Sokol, afora a espacialidade da cor, que a relacionaria a Weissmann, os trabalhos incorporam definitivamente seu ponto de apoio como um elemento inescapável: é assim com a cor refletida na parede (e internamente em outras peças), o mesmo valendo pela instalação da obra dependente de um canto de parede, que não só rebateria as “dobras” das paredes cruzadas, como renova um longo percurso da escultura desde a modernidade, ativando essa fatia do espaço não por acaso tida pelo senso comum como “canto morto”.
Por sua vez, as fotografias de Niura, José Pederneiras e Jomar Bragança abrangem do diálogo com a pintura àquele outro com a arquitetura, do limite da abstração à – inversamente – concretude da geometria dos espaços habitáveis. As fotografias de Pederneiras aqui apresentadas, abrem-se para leituras que atentam para uma simplificação dos elementos, fazendo-os quase se tornarem uma malha gráfica (como no “desenho” feito pela cortina transparente de um teatro, ou com a trama geométrica do esqueleto de uma fábrica), mas também a aspectos culturais (mesmo esta tomada não tendo sido feita no Brasil, ela não se exime de evocar a recorrente memória industrial almejada pelo nosso “projeto construtivo”) e sociais (no que ela tem de ruína, traz à reboque igualmente a distopia contemporânea das cidades pós-industriais e do que elas deixam para trás). Jomar, por sua vez, toma o objeto arquitetônico por um outro viés: seus registros se interessam, sempre conectados a memória da arquitetura moderna, em alguns momentos enfatizam um certo estranhamento ou inusitado dessas formas que ocupam a paisagem; em outros, ele explora uma tradução (ou transposição) dos valores arquitetônicos em valores fotográficos (ou vice-versa). Nota-se-a, por exemplo, em seu interesse pelo encontro entre a luz fotográfica e a luz do espaço, quando a transparência de muros de vidro nos lembra sobre as gradações e o filtro de luz que é a base da fotografia. E, com isso, como pelos contrastes entre a luz transparente e a luz refletida, que traduzem o contraste entre superfícies transparentes e opacas que estruturam o espaço arquitetônico, conseguimos imageticamente adentrar nesse último.
A tematização do espaço arquitetônico – que, por sua natureza é um espaço de relações sociais – nos conduz a um outro percurso, no qual, cruzadas com as “arquiteturas” acima discutidas, as pinturas de Desali são emblemáticas. A geometria do artista não é uma mera “releitura” de vanguardas do século XX, mas o seu cotejo com uma outra visualidade reprimida na história da arte canônica, relegada ao “popular”. Suas paisagens dialogam, mas são também uma fissura tanto em relação aquelas cenas pós-suprematistas de Malevich quanto aos nossos “casarões de açafrão e de ocre nos verdes da Favela”. Pois essas pinturas indagam os mitos e a realidade de nossa modernidade universal, transformadora e construtiva, ao trazerem para o primeiro plano esse espaço “urbano, suburbano, fronteiriço e continental”, que, revela, na verdade as contradições de um sistema que impôs a ele simultaneamente os limbos (periferias) de uma paisagem industrial, pós-industrial e pré-industrial.
Sem pretensões sistematizadoras, Afinidades Eletivas entende-se como uma ocasião de convidar o visitante a leituras enfeixadas, refletindo sobre a arte brasileira como um território cruzado por histórias, pontos de contato e novos caminhos, aspectos sempre valorizados e desafiadores, quando nos debruçamos sobre pensar essa múltipla produção.
Guilherme Bueno – Curador