Nina Horikawa
Ponto cego, fio condutor
Nina Horikawa explora a ambiguidade nas relações humanas e as nuances da intimidade. Suas pinturas convidam os públicos a refletir sobre o que não está visível, indagando sobre o que revelam as imagens acerca daquilo que poderia existir fora do quadro.
Para tanto, Horikawa privilegia vãos entre as pessoas e as coisas. Seus personagens são captados em momentos silenciosos, com gestos aparentemente triviais, eternizados na pintura. Não há qualquer ato heroico a ser retratado; para ela, a existência é feita do ordinário diário e não de grandes feitos. São justamente os dias seguidos de dias que constroem a existência humana e, também, a não-humana.
E se a História fosse narrada a partir dessa repetição cotidiana? E se protagonistas centralizadores de toda a ação fossem substituídos por personagens diversos que interagem desempenhando apenas atividades essenciais para a sobrevivência – aí incluída a arte como fazer fundamental da condição humana?
A História seria aquela de repetições sucessivas, acompanhando o alternar das estações, a vida e a morte de tudo que possui existência. Como afirma a escritora de ficção científica e feminista Ursula Le Guin, é a “estória” contada a partir de uma visão heroicizante do protagonista que ataca e mata que faz a diferença em como não valorizamos silenciosos dias de plantio e colheita, amor e morte.
Horikawa, ao recortar trechos de cenas domésticas ou exteriores, chama atenção para aquilo que parece familiar, mas, ao mesmo tempo, resulta estranho quando mostrado em fragmentos paralisados. Isso nos faz indagar sobre o que acontece naquela cena, para onde ela aponta, qual o seu lugar na narrativa da vida daqueles personagens. Será que aquilo que não vemos dessa cena guarda o mistério que a explicaria? Como num filme de imagens silenciosas, a artista paralisa o instante. Estamos no cinema de Wong Kar Wai, entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2000. Tantos silêncios entre pessoas, entre elas e as cidades nas quais habitam.
Há um fio condutor invisível conectando as composições da artista, que alude à interconexão entre os indivíduos. Como em filmes cujas histórias dos personagens se interlaçam, uma cena-pintura de Horikawa ecoa na outra e na outra. Ela produz uma comunidade de indivíduos não identificados que se relacionam corporalmente por gestos suavemente afetivos.
As paletas de cores que recobrem fundos, geralmente manchas abstratas, variam entre azuis e rosas pasteis e cores vivas. (Muitas vezes a paleta de Horikawa vem da pintura de Edvard Munch e Gauguin, que ela anda estudando). Há tantas camadas de pintura quanto necessárias para criar luzes e sombras construídas sobretudo em tons de rosas e verdes, respectivamente. A artista, visando o efeito desejado, frequentemente inicia a pintura com tinta acrílica, passando ao óleo para dar acabamento. A jovem Horikawa domina muitas técnicas pictóricas, que utiliza juntas na mesma tela como base de construção de sua própria poética.
Nos personagens, aparecem estampas variadas que cobrem seus corpos e ainda recobrem os espaços nos quais estão. Vemos camisas listradas, almofadas floridas, tapetes geométricos. Essas estampas que recobrem tecidos na pintura de Horikawa lembram imensamente aquelas que aparecem nas pinturas da portuguesa Paula Rego, em trabalhos como “Branca de neve engole maçã envenenada”, de 1995. Não é coincidência referirmos uma artista que também está preocupada com os aspectos não-ditos e não-revelados da vida entre nós.
Horikawa descreve “desenhar com o pincel” quando, sobre os fundos, desenvolve linhas que contornam figuras ou definem listras. Desse modo, a pintora opera simultaneamente com figuração e abstração, deixando com que a aparência de partes inacabadas demonstre o processo pictórico que emprega. Nesse aspecto, assemelha-se à pintura de Elaine de Kooning, particularmente de seus retratos masculinos, desenvolvidos entre os anos 1950 e 1960, nos quais partes mais descritivamente solucionadas são justapostas a partes mais abstratas. Porém, por se tratar de retratos, os personagens de De Kooning estavam quase sempre centralizados, apresentando seus rostos de frente para quem os olha; em Horikawa, os rostos estão escondidos, as figuras viradas de costas ou de lado, com apenas partes delas visíveis para nós.
A artista parte de referências fotográficas coletadas das pessoas do seu círculo pessoal – amigos e familiares podem eventualmente posar, estratégia semelhante àquela da pintora estadunidense Jenna Gribbon, artista de interesse para Horikawa. Apropria-se ainda de imagens da internet e faz alusões a trabalhos de artistas que acompanha. Durante o processo da pintura, a artista realiza modificações nas imagens privilegiando as composições e as situações ali apresentadas. Ao contrário de De Kooning, Horikawa cada vez possui menos interesse em produzir retratos, no sentido tradicional do gênero.
Como em “Ponto cego, fio condutor”, que dá nome à exposição, em Horikawa, alguns corpos se unem por meio de sutis encontros indicados pela pincelada gráfica que se interpõe entre eles ou mesmo sobre eles. Há uma linha visível ou invisível que amarra suavemente as existências de tudo o que vemos na cena. Os pontos cegos, como na vida, podem ser intuídos. Sabemos o que pode estar detrás de uma coluna ou fora do limite de um quadro, para além da moldura, porque imaginamos essa continuidade. Horikawa nos deixa com a pergunta sobre aquilo que fica para trás de nossas existências. Os rastros de nossa ação coletiva e individual sobre as coisas, os outros, o espaço.
Ana Avelar.