PINTURA EM DOIS (E MAIS) ÂNGULOS
A pintura de Ricardo Homen franqueia diversas entradas para o espectador: para alguns, há o sincero prazer imediato de ser atraído por suas cores, capazes de equilibrarem vibração e duração, ou seja, após o impacto inicial, elas gradualmente convidam ao olhar compenetrado de suas sutilezas; outros se comprazem nas belas desventuras de um “artista de artistas”, ao se debruçarem sobre uma voluptuosa habilidade de explorar os recursos oferecidos pelas tintas; há, não menos um terceiro interlocutor (e aqui nos detemos, pois a série tende a se multiplicar indefinidamente): aquele que percebe através das camadas de planos ou nas junções de partes toda uma história de possibilidades para a pintura que abraça referências amplas o suficiente para abrigar o legado de vanguardas do século XX à pintura de matriz popular.
De fato, Ricardo Homen é um artista sensível ao desdobramento de sínteses. Expliquemo-nos: de pronto, identifica-se uma constelação de referências que convergem e são processadas por ele, na busca de um marco para a pintura após tudo (como diria Augusto de Campos, ao falar de poesia). Há desde diálogos diretos, entremeados por relações de afetividade – como, por exemplo, sua sensibilidade em fazer encontrar as cores da paisagem da cidade e seu entorno com a paleta de Lorenzato e a abordagem gráfica da cor de Amílcar de Castro (a cor é um signo expressivo e, portanto, direto) – até outras que reinventam abordagens da relação corpórea entre objeto e cor vivamente em jogo desde as releituras da tradição “construtiva” estabelecida por certas vertentes da arte brasileira do final de sua modernidade no início dos anos 1960 até as décadas posteriores.
Para ser mais assertivo, ainda sob o viés da síntese e reinvenção, uma inquietação sobre a relação entre cor e objeto atenta tanto para Willys de Castro quanto para Ione Saldanha – a saber, como os planos de cor se convertem em volumes, em objetos de cor. Ela permeia algumas das construções do artista, nas quais a cor e a articulação dos perfis de madeira (que antes se escondiam como o esqueleto do chassi) criam objetos de cor, ou seja, volumes nos quais, ao invés de um plano frontal e representacional (como na pintura) a cor adere aos diferentes eixos do objeto e assume diferentes pontos de vista, desde a visão frontal até aquela na qual os ângulos e a rotação dos volumes giram a obra do paralelismo da parede para uma relação estereométrica.
Contudo, Ricardo, ao mesmo tempo recoloca o problema da cor e da profundidade de planos na superfície da pintura, uma vez que sua propulsão rumo ao espaço tridimensional é apenas uma dentre várias soluções existentes. Uma vez que tomamos a liberdade de convocar obras e artistas em diálogo (mesmo que não presencial), soa lícito arriscar uma outra convergência: Aluísio Carvão. A razão de sugeri-la se justificaria na evidência visual. Ricardo Homen, como constatamos em obras recentes, explorou um desafio que Carvão se autoimpusera em algumas pinturas dos anos 1950 (conquanto Homen lide com elas a partir da paleta singular apontada por nós anteriormente): como condensar a vibração cromática dentro dos limites da tela, entendo que a virtualidade do plano pictórico é um inquietante fato, como tirar o máximo de luminosidade da cor ciente das restrições impostas por uma tela que não quer transbordar o seu espaço, mas fazer seu campo interno vibrar o máximo possível? Carvão tentara resolver esse desafio centralizando na tela as formas e suas cores e, em seguida, circundando-as de tons cinzentos que contivessem, balanceassem, equalizassem sua intensidade.
Ricardo Homen, em suas pinturas recentes de grande escala, assume essa possibilidade, acrescentando-lhes alguns manejos. Em primeiro lugar, ele usa formas que, mesmo cercadas por um plano de fundo de uma cor intermediária, estabelecem um eco da silhueta da tela: a progressão de seus quadrados, retângulos filiformes e figuras geométricas paralelas são evoluções cadenciadas de tempos da cor entre os quadriláteros que formam os planos internos da pintura e a própria silhueta do chassi – trata-se de um crescendo da cor. O outro ponto é que a paleta de Ricardo não é uma disciplina da cor atrelada a um manifesto (uma cor “teórica”), mostrando-se receptiva justamente a percepção sensível da paisagem que lhe rodeia, com seus extremos entre cores vibrantes e meios-tons. Indo além, se a cor na pintura tem uma, muitas, histórias, ela passa por essa provação que é o ateliê. É no ateliê que problemas práticos e teóricos da cor precisam negociar um denominador comum e – para nossa surpresa (surpresa?) – eles têm como chave a intuição do artista, que a examina escrupulosamente e revela o quanto ela ganha insuspeitos matizes a cada transparência, sobreposição de camadas, texturas, variações de diluição ou solidez no seu uso.
Ricardo é, portanto, um artista que reitera a vitalidade da pintura como uma experiência contínua, afortunadamente em aberto. Que ele escolha formas simplificadas, não é um dilema programático, como aquele que motivara a geometria das vanguardas. Sem desconsiderá-las, há um princípio cristalino e certeiro: como pensar a relação entre cores e planos objetivamente, como examinar a gramática de base da pintura em sua simplicidade potente e imediata? Suas formas, que antes de serem uma geometria, são relações entre espaço interno e externo da tela, são uma organização do espaço da tela e de sua parte interna. Tratando-se de uma organização que não é uma simples dedução (o plano A sucede o plano B que faz contraponto ao plano de cor C etc) ela se abre para sutilezas, como, por exemplo, a sinuosa e discreta riqueza de transparências, que instigam o espectador a se movimentar entre o que são espacialidades virtuais entre planos (ilusões de ótica, impressões de um plano estar atrás ou a frente do outro) e a sua literalidade (todas as camadas de pintura se assentam na mesma superfície). Pareceria pouco, mas não é: a mobilidade entre planos recuarem, avançarem ou se alinharem conta muito sobre a história da pintura. Certa Intuição: por trás da aparente coloquialidade da expressão, há a delicada e arguta precisão e equilíbrio permeáveis aos lances fluidos que habitam o ateliê. Mas estes atravessamentos não se manifestam em suas telas como uma exclamação, mas antes com uma discrição sedutora, uma descoberta amorosa da aventura da pintura.
Curadoria GUILHERME BUENO