“Eu sigo lutando…”[1]
Rodrigo Moura
Não se deve começar a escrever o texto se não for por onde começou a conversa.
Ali, onde se nasce e se ganha um nome e um chão e, se houver sorte, um pai e uma mãe. No Jequitinhonha, o rio, o vale – a terra cindida pelo corpo de água sinuoso, o rio cheio de peixes do topônimo indígena.
Maria Lira Marques Borges, herdeira e vizinha dos maxacalis, povo originário daquelas paragens do nordeste de Minas Gerais, cresceu, assim como eles, desconhecendo fronteiras muito estritas entre o que se chama vida ou aquilo que identificamos como arte – seja na religião, na festa, na organização comunitária ou na vida doméstica.
Com o pai, Tarcísio, descobriu os primeiros insumos que utilizou para escultura – a cera de abelha que ele usava como sapateiro para revestir a linha de costurar o couro. Com essa matéria, moldou pela primeira vez, sentiu o gesto criador que vinha das mãos. A mãe, Odília, filha de uma Lira mais antiga, a avó de quem a artista recebeu o nome, executa peças de argila crua pintada com tinta adquirida no comércio de Araçuaí.
Para reforçar o barro, catado na beira do rio, a mãe adiciona componentes como o trigo, para dar liga, e a cinza, para melhorar a propriedade de queima — antigas técnicas de origem indígena e africana que passam de geração em geração. Ela cria presépios que são oferecidos aos vizinhos, que não deixam de lembrar à senhora que lhes prepare as estatuetas na época do Natal, comprovando sua popularidade.
No mercado de Araçuaí, Lira passa a ter contato com as artesãs e suas técnicas de produção de utilitários em cerâmica: botijas, caqueiros, panelas, talhas. Observa, pergunta, obtém informações técnicas importantes. Por que é vermelho? Porque é queimado. E este cinza? É a tabatinga. Descobre que a espiga de milho e a casca do coco são usados para levantar as paredes dos potes e para conferir-lhes texturas que decoram suas superfícies.
Antes de se chamar Araçuaí, o aldeamento tinha o nome de Calhaus, pela presença de muitas pedras na região, os mesmos seixos de quartzo que muitos anos depois aparecerão no trabalho de Lira, como suporte de suas pinturas de animais. Situada bem no meio do curso do rio, a cidade é uma espécie de ponto de ligação no Vale. Conecta Caraí, Baixa Quente, Itinga, Santana do Araçuaí, Minas Novas, Itamarandiba, pequenas cidades que abrigam diferentes tradições de cerâmica, algumas que irão gerar grandes artistas que serão reconhecidos num futuro próximo, pavimentando o caminho para Lira.
[1] Partes deste texto e seu título são resultado de conversa telefônica com a artista em maio de 2021.